HISTÓRIA 414
Ora, para hoje, dia importante para o coração dos adeptos da seleção nacional que, finalmente, garantiu o apuramento para a fase final do Mundial de 2026, lembrei-me de partilhar uma história que me leva à tentativa de golpe de estado, na Guiné-Bissau, de 7 de junho de 1998, perpetrado pelas tropas do, então, tenente-coronel Ansumane Mané que pretendia depor o presidente Nino Vieira.
Como era habitual nas nossas ex-províncias ultramarinas, quando havia instabilidade política e social, o Governo de Portugal, rapidamente, fazia uso da notável capacidade da aeronave C-130H, no sentido de proteger os cidadãos lusos e outros cidadãos do espaço europeu comunitário, procedendo à sua evacuação para locais mais seguros e criando as condições necessárias ao seu repatriamento para os países de origem.
Recordo-me que, apenas 3 dias após o início das hostilidades – 7 de junho de 1998 -, já a Esquadra 501 – Bisontes -, tinha 4 aeronaves e as respetivas tripulações, estacionadas numa Base Aérea francesa, em Dakar, de onde, ao fim de 2 dias de permanência, foram movimentadas para a ilha do Sal, por razões de incapacidade logística - e, já agora, alguma má vontade - do comando francês daquela base.
A deposição do presidente Nino Vieira haveria de ocorrer em maio de 1999, tendo assumido o cargo o, agora, Brigadeiro Ansumane Mané.
Após assumir a presidência da República, Ansumane Mané iniciou um périplo por vários países vizinhos, formalizando a sua condição de novo Presidente da República da Guiné-Bissau. No decurso desse périplo, por razões associadas à precariedade da economia guineense, em concomitância com o ceticismo de alguns líderes políticos de países da região em reconhecerem legitimidade do Brigadeiro para reivindicar a presidência guineense, o recém-empossado presidente viu-se retido na ilha do Sal, sem qualquer possibilidade de regressar a Bissau, por falta de transporte aéreo, fosse porque era inexistente, na ilha, fosse porque nenhum líder político dos países vizinhos manifestou disponibilidade em facultar-lhe esse tipo de transporte.
As autoridades guineenses solicitaram ajuda, junto da Embaixada de Portugal, em Bissau e, através desses canais diplomáticos, entendeu o poder político português disponibilizar uma aeronave C-130H, com o objetivo de transportar o novel presidente até à capital do seu país – Bissau -.
A tripulação saiu de Lisboa com destino à ilha do Sal, onde iria pernoitar e, no dia seguinte, voaria para o Aeroporto Internacional Osvaldo Vieira – Bissau -, com o senhor Brigadeiro Ansumane Mané a bordo, estando planeado o regresso à ilha do Sal, no mesmo dia. Por outras palavras, era só mesmo deixar a celebridade, em Bissau, e voltar à ilha do Sal.
Após a aterragem no Aeroporto Internacional Amílcar Cabral, a tripulação alojou-se no Hotel Morabeza e, logo à chegada, fomos informados de que o senhor Brigadeiro, também, estava ali alojado.
À noite, após o jantar, enquanto jogávamos “uma suecada”, aproximou-se uma figura imponente, sorriso rasgado, tão rasgado que os cantos da boca quase tocavam os lóbulos das orelhas, bóina encarnada enterrada na cabeça, camuflado e um cinturão verde igual aos usados pelas Forças Armadas portuguesas, com um pistolão que incomodava, só pela sombra que fazia. Era o senhor Brigadeiro Ansumane Mané.
Esboçou um cumprimento, sem dizer qualquer palavra, ficou em pé, vendo os tugas a “bater as cartas” e, volta e meia, soltava um sorriso.
Convidámos o senhor a participar na “suecada”. Ele declinou, não através de palavras, mas usando a linguagem gestual com aquelas mãos que mais pareciam duas talochas.
O senhor Brigadeiro fazia-se acompanhar de um militar da Marinha guineense – Capitão-Tenente Zamora -. Era uma figura baixa e bem anafada, fazendo lembrar uma personagem dos livros de Eça de Queiroz. Deveria ter menos meio metro do que o seu chefe.
Foi essa figura - Capitão-Tenente Zamora - que nos explicou que o seu chefe não falava nem compreendia a Língua portuguesa e acrescentou um detalhe, do qual não fazia a menor ideia: o senhor era gambiano e não guineense como, confesso, eu pensava.
No dia seguinte, na porta do avião, aguardando a chegada da personalidade, percebi que o senhor Presidente da Guiné-Bissau ia-se aproximando da aeronave, mantendo o cinturão e o pistolão. Chamei o oficial da Marinha que, pelos vistos, era Ajudante de Campo do Brigadeiro e informei-o de que o seu chefe tinha que entregar, à tripulação, o armamento que exibia. Pensei que iria viver um período de maior tensão, mas, surpreendentemente, o Brigadeiro desapertou o cinturão e entregou-o ao seu Ajudante de Campo que, por sua vez, o depositou nas minhas mãos. E lá fomos para Bissau, com a arma do famoso Ansumane Mané colocada por baixo do Radar do C-130H.
Quando aterrámos em Bissau, e após devolver o pistolão ao senhor Brigadeiro, procedemos às despedidas, num tom muito informal. O Capitão-Tenente, Zamora, transmitiu-nos o agradecimento do seu chefe, por todo o trabalho efetuado pela tripulação e, apressadamente, colocou-se dois passos atrás do chefe que, entretanto, se ia afastando da aeronave, quase correndo, porque as suas pernas curtas não tinham andamento para o gigante que seguia à sua frente.
Enquanto observava aquela dupla que me fazia lembrar a sorte grande e a terminação, reparei que, em marcha rápida, se aproximava um indivíduo usando aquela indumentária que faz lembrar as sotainas dos padres, só que em vez da cor preta e dos botões do pescoço até aos pés, era branca e não tinha botões.
Chegado ao pé de mim, disparou num português muito fluído e com uma dicção que fazia lembrar os locutores de rádio, nas frequências FM:
- Boa tarde, chefe. Sou funcionário da empresa Aeroportos e Navegação Aérea da Guiné-Bissau. Quero entregar-lhe a fatura dos custos inerentes à aterragem e parqueamento da aeronave no nosso aeroporto.
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Recebi uma folha A4, verifiquei que tinha um conjunto de linhas escritas, com uma quantia associada a cada uma das linhas e, lá em baixo, escrito a bold, aparecia a quantia total a pagar: 320 USD.
- O senhor sabe que esta aeronave aterrou neste aeroporto com o único propósito de transportar o vosso presidente que, de outra forma, não tinha como cá chegar? – A pergunta não escondia a minha incredulidade, face ao despautério da tentativa de cobrar um serviço que Portugal estava a prestar à Guiné.
- Bem, o problema é que nós somos uma empresa pública de capitais privados e temos a obrigação de cobrar todos os movimentos de aeronaves, independentemente da natureza desses movimentos – respondeu o senhor da abaya branca, projetando um olhar do tipo “paga e não bufes”.
Nesse instante, entendi que estava na hora de chamar o Zamora. Aumentando uns generosos decibéis ao meu chamamento, gritei pelo nome da personagem queirosiana.
Rebolando à velocidade da luz, o oficial da Marinha acercou-se de mim e, antes que dissesse alguma coisa, coloquei-o ao corrente do que se estava a passar.
O Capitão-Tenente Zamora olhou para o funcionário da empresa pública de capitais privados revelando muita hesitação em tentar resolver o problema.
- Aguarde um momento – disse ele ao seu compatriota.
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O coitado do Zamora encetou outra corrida, até junto do senhor Brigadeiro, trocaram algumas palavras e, de repente, observo aquele imponente figura fazendo gestos horizontais de cruzamento e afastamento dos braços, numa clara mensagem de que não tínhamos nada para pagar.
A expressão facial do funcionário do aeroporto revelava um desalento enorme e alguma resignação, dado que não havia condições de contrariar a decisão de um indivíduo de quase 2 metros, pistolão à cintura e, ainda por cima, presidente da República.
Devolvi “a conta” ao senhor e, antes de me despedir, pedi-lhe que, logo que tivesse tempo, escrevesse qualquer coisa, em papel, acerca do conceito de “empresa pública de capitais privados” e enviasse, via fax, ao cuidado do Capitão Francisco Gonçalves, para o Hotel Morabeza, na ilha do Sal.
Ainda, hoje, espero o tal fax.
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