HISTÓRIA 408

Maputo, finais da década de 90 do século passado. Os Bisontes iam iniciar uma missão de regresso a Lisboa, com escala para descanso dos tripulantes, em São Tomé e Príncipe. Após a consulta da informação meteorológica, foi decidido que faríamos uma escala técnica, em Luanda, para reabastecimento da aeronave. De facto, naquele dia, o que se anunciava em rota comprometia, seriamente, o hábito de efetuar a troço, Maputo-São Tomé, sem necessidade de qualquer reabastecimento intermédio. Naquele tempo, Angola vivia, ainda, um período de guerra civil e, por conseguinte, havia uma metodologia muito própria de comunicações entre os aviões que sobrevoavam o espaço aéreo angolano e os operadores em terra. Naturalmente, essa metodologia era estudada, com critério, pelas tripulações da Esquadra 501. Embora, as publicações aeronáuticas informassem que Angola tinha, apenas, uma FIR (Luanda), a tripulação sabia, empiricamente, que a informação de voo era prestada por dois operadores: um baseado em Luanda e outro baseado no Lubango e que a frequência HF era a mesma. Até determinada latitude, chamava-se um operador; a partir daí, chamava-se o outro. Em rota, não havia alternativa à banda HF. Quando nos preparávamos para entrar no espaço aéreo angolano, voando, obviamente, de sudeste para noroeste, o co-piloto efetuou a primeira tentativa de contacto com o operador angolano: - Lubango, AFP 9999 (número fictício) chamando Lubango. Após um lapso de tempo julgado adequado e face à ausência de qualquer resposta, o co-piloto repetiu a tentativa de contacto: - Lubango, Lubango, AFP 9999 chamando Lubango. Silêncio-rádio. Algum tempo volvido, nova tentativa, sem êxito. Já em pleno espaço aéreo angolano, a tripulação ia mantendo os reportes “all-stations” e, de vez em quando, ia tentado o contacto, em HF, com o operador de Lubango, sem lograr qualquer êxito. De repente, o ruído de fundo, característico das frequências HF, foi cortado por uma voz decidida e que aparentava alguma ansiedade: - Lubango, Lubango, é Luanda chamando Lubango, escuto – a entoação reivindicava a ordem de atendimento do seu, pouco provável, interlocutor. De Lubango, não chegava nada. O operador de Luanda foi efetuando tentativas sucessivas, sem êxito, e de cada vez que ia tentando, a tonalidade da voz ia aumentando até ao limite da exasperação. De Lubango, continuava a não chegar nada. Quando a aeronave estava a poucos minutos de atingir a latitude, a partir da qual chamaria o operador de Luanda, e após mais uma, das milhentas tentativas de Luanda em conseguir contacto com o seu conterrâneo, o operador de Lubango teve a infeliz ideia de responder ao chamamento de Luanda. - Luanda, Luanda, boa tarde, Lubango está à escuta, transmita. - Fez-se um compasso de espera que, suspeito, deu tempo a Luanda ensaiar aquilo que aconteceu em seguida. - Lubango, aqui Luanda. Você está a dormir, pá? O AFP 9999 está a chamá-lo, há mais de duas horas, e você não responde? Você quer comprometer as cores do seu país, prestando uma imagem de tanta indolência? – o luandense estava irritadíssimo e, embora não conseguisse vê-lo, era plausível pensar que estaria espumando pela boca. O operador de Lubango foi-se desculpando com uns fortes sintomas de paludismo e que, por esse facto, se tinha ausentado do seu local de trabalho, durante algum tempo. - Durante algum tempo? Você está a brincar comigo, pá? Você não deveria dizer durante a tarde toda? Se você tem paludismo, você pode morrer, mas antes chame o seu substituto, porque o país não pode parar, só porque você está para morrer – o timbre de voz do luandense tinha aumentado e a voz era tão estrepitosa que receei que o lubanguense pudesse morrer, não de paludismo, mas de surdez galopante. Seguiram-se vários impropérios impublicáveis e, no primeiro intervalo de tão enérgica bronca verbal, lá conseguimos falar com o operador de Luanda, partilhando toda a informação relativa ao nosso voo, incluindo a estima a Luanda. Depois da aterragem em Luanda, desloquei-me ao “Despacho” para tratar da documentação necessária ao troço seguinte que nos levaria a São Tomé. Quando estava próximo da porta de entrada do edifício de atendimento das tripulações, fui abordado por um autóctone, impecavelmente vestido que, do alto do seu fato e da gravata, perguntou: - O senhor é o comandante do avião português que acabou de aterrar?. - Não, senhor. O comandante está na placa de estacionamento, a bordo da aeronave, e não me parece que tencione sair. Algum problema? - Gostava de apresentar os meus pedidos de desculpa pelo tratamento menos adequado de que foram alvo, por parte do meu camarada do Lubango, e gostava que soubesse que as tripulações portuguesas serão, sempre, bem-vindos ao nosso país – a voz entaramelada, evidenciando algum embaraço quiçá, vergonha alheia, contrastava com a sua postura bem alinhada e a cabeça, anormalmente, levantada. Rapidamente, percebi que se tratava do operador de Luanda, o tal da “bronca enérgica” ao camarada do Lubango. - Sabe, nem todos podem ter o privilégio de ter aprendido na Escola, onde eu aprendi – acrescentou o senhor do fato impecável, exibindo, agora, um sorriso que apresentava alguns laivos de nostalgia. - Já agora, diga-me, qual é essa Escola de que tanto se orgulha? – perguntei com redobrada curiosidade. - Ota, ano de 1971, foi ali que eu aprendi. Orgulho-me muito de ter tido esse privilégio! – a resposta pronta e dita de uma forma tão enfática proporcionou-me a perceção exata de que estava perante um indivíduo que tinha sabido sanar, por completo, as divergências criadas à volta dos 500 anos de presença portuguesa, naquele território. - - Adeus, caro amigo, boa sorte para si e para os seus – despedi-me com a certeza de que, mesmo com as divergências intrínsecas à relação colonizador/colonizado, era muito remunerador encontrar gente que não tinha dúvidas em orgulhar-se da sua formação portuguesa.

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