HISTÓRIA 411

Agora que a Cláudia já estragou tudo o que tinha para estragar e parece estar de saída e o Benfica, ainda, não emitiu qualquer comunicado – suspeito que, ainda, venha a fazê-lo, dado que os juvenis só jogam mais tarde e há, sempre, um canto mal assinalado à espreita -, julguei razoável partilhar mais uma pequena história que, mesmo não envolvendo ameaças de armas, contacto com o IN ou outras vicissitudes suscetíveis de abalar a tranquilidade das almas envolvidas, revela como a privação do sono pode afetar, de forma significativa, qualquer um dos mortais. A aeronave C-130H tinha aterrado no aeroporto de São Tomé, proveniente de Maputo, logo às primeiras horas da manhã. Por razões que a razão e o bom senso desconhecem, o chefe da missão recebeu instruções de Lisboa para permanecer, tão-somente, 12 horas em São Tomé e, em seguida descolar com destino a Lisboa. Naturalmente, a tripulação ficou confusa e algo descontente, dado que o ciclo circadiano não é uma invenção abstrata e, muito provavelmente, o titular da estranha imposição não deve ter ouvido falar em “relógio biológico interno do corpo que regula funções como o sono, a vigília, o metabolismo e a temperatura corporal ao longo de um período de aproximadamente 24 horas.” Apesar do absurdo da questão, a tripulação tratou, de imediato, do planeamento do trajeto São Tomé-Lisboa e, consultada a meteorologia – apesar de escassa e de pouca fiabilidade – ficou decidido que faríamos o troço sem qualquer escala técnica para reabastecimento. Foi prestada especial atenção à Zona de Convergência Intertropical, o vento estava, predominantemente, favorável aos interesses da tripulação, versus, consumo de combustível e, dessa forma, informámos Lisboa do nosso plano de intenções. A duração do voo era de 09H30. Descolámos de São Tomé por volta das 21H15 e a primeira estima a Lisboa apontava para as 06H45. Obviamente, era uma estima sustentada na consulta das cartas de vento disponíveis, no aeroporto de São Tomé e, naturalmente, não previa eventuais desvios à rota, por motivos de adversidade meteorológica. Logo que a aeronave estabilizou no primeiro nível de voo planeado, o co-piloto, via HF, transmitiu a FAP Lisboa (Comando Operacional da Força Aérea) a hora estimada de aterragem em Lisboa. Pouco tempo depois, com uma iluminação de cockpit muito reduzida, o comandante de bordo iniciou um período de vénias, em direção ao manche, quase como querendo responder, afirmativamente, a todas as questões que lhe fossem colocadas. Como era um benfiquista dos antigos, cheguei a perguntar-lhe, em surdina, via interfonia, se o Sporting era, de facto, o melhor clube do mundo. Duas ou três vénias do comandante confirmaram a minha opinião. O tempo foi passando, o mecânico de voo ia, de tempos a tempos, registando os dados de voo que eram mandatórios naquele perfil de voo, o co-piloto ia fazendo os famigerados reportes “all stations” e o navegador ia cumprindo as suas obrigações a bordo. Em boa verdade, conforme o tempo ia passando, o silêncio no cockpit foi aumentando e cada um estava na sua. Entretanto, o comandante tinha iniciado uma sinfonia, alternando os sustenidos com os bemóis, num ritmo que me fazia voltar à insensatez da cronologia da missão. Estávamos a voar há cerca de 7 horas, os graus de latitude iam aumentando, na leitura dos sistemas de navegação, já se vislumbrava, lá longe, o dealbar do dia, quando o cockpit foi inundado por uma luz âmbar, proveniente do SELCAL. O co-piloto confirmou a que HF correspondia aquele SELCAL, espreguiçou-se, acomodou-se na cadeira, desligou a tal luz âmbar, selecionou a sua caixa de comunicações na posição do HF correto, confirmou que a frequência correspondente era a de FAP Lisboa e premiu o botão: - FAP Lisboa, confirme que chamou o Bisonte 06 – A voz do co-piloto saiu preguiçosa, quase que reclamando a inoportunidade do contacto. - Bisonte 06, é FAP Lisboa, é FAP Lisboa, afirmativo. Confirme que a sua estima a Lisboa se mantém para 0645 – O fragor da voz do operador de Lisboa contrastava, em absoluto, com a voz fleumática do co-piloto. Indiquei ao co-piloto que deveria somar 19 minutos à estima inicial que houvera sido calculada 7 horas antes. O co-piloto agradeceu e voltou a premir o botão do rádio: - FAP Lisboa, o Bisonte 06 estima Lisboa às 0664. Confirme que copiou. – a voz do co-piloto transportava a entoação de quem estava aliviado por estar em vias de despachar o “invasor da noite”. Em simultâneo, indiciava que o cansaço começava a ameaçar a sua clareza mental de raciocínio. Ainda tentei corrigir aquele absurdo "06H64", mas quase de imediato, o operador de Lisboa, bradou lá do fundo do seu bunker: - Bisonte 06, Bisonte 06, afirmativo. FAP Lisboa copiou estima do Bisonte 06 a Lisboa, às 0664. Calmamente, alertei o co-piloto para a incorreção da representação da hora estimada a Lisboa. - Pelos vistos, ele percebeu a mensagem. Agora, só tem que saber fazer as contas – disse o co-piloto, entre um bocejo e o estiramento possível das pernas e dos braços. Depois da aterragem, em Lisboa, liguei para casa, dando conta de que já tinha chegado e de que tudo tinha corrido bem. Quando me foi perguntado a que horas estaria em casa, respondi, dizendo que iria almoçar a casa e que estimava chegar, por volta das 11H75.

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