PENSAMENTOS ABERTOS E LIVRES - 196 (O NATAL DA HIPROCRISIA CONVENIENTE)
O Natal aproxima-se todos os anos com a mesma encenação coletiva: luzes nas ruas, mensagens açucaradas, votos de “Festas Felizes” e discursos inflamados sobre união, solidariedade e amor ao próximo. É, curiosamente, a época do ano em que mais se fala de valores — e aquela em que mais se disfarça a ausência deles.
À mesa do Natal sentam-se famílias desavindas que passam o resto do ano sem se falar. Trocam sorrisos forçados, abraços ensaiados e palavras vazias, apenas porque “é Natal”. No dia seguinte, regressam as mágoas, os conflitos, os silêncios prolongados e as traições nunca resolvidas. O Natal não reconcilia: apenas suspende temporariamente a verdade.
No mundo empresarial, a hipocrisia ganha contornos ainda mais graves. Há empresários que exploram trabalhadores, que atrasam salários, que fogem às suas obrigações fiscais, que vivem de expedientes e esquemas — e que, em dezembro, enviam cartões de boas-festas, organizam jantares de Natal e falam de “família empresarial”. A mesma mão que aperta a garganta durante o ano estende-se, nesta época, para desejar prosperidade e paz.
Na política, o cenário não é diferente. Políticos envolvidos em casos de corrupção, favorecimentos, tráfico de influências e promessas não cumpridas surgem com mensagens cuidadosamente redigidas sobre esperança, justiça social e futuro melhor. Discursam sobre valores cristãos, esquecendo-se convenientemente da ética, da transparência e da responsabilidade que deveriam praticar todos os dias, e não apenas citar em dezembro.
As redes sociais amplificam este teatro. Multiplicam-se as publicações com presépios, frases bíblicas e desejos universais de felicidade, muitas vezes vindas de quem passa o ano a destilar ódio, intolerância, mentira ou indiferença. O Natal tornou-se um ritual social obrigatório, uma máscara coletiva que se coloca por uns dias para aliviar consciências cansadas.
Nada disto invalida o verdadeiro significado do Natal. Pelo contrário: denuncia o quanto dele nos afastámos. O Natal, se tivesse de ser honesto, não caberia em mensagens copiadas nem em gestos simbólicos. Exigiria coerência, justiça, empatia real e responsabilidade ao longo de todo o ano.
Talvez o problema não seja o Natal, mas a forma como o usamos: como absolvição temporária para comportamentos que sabemos errados. Desejar “Feliz Natal” é fácil. Difícil é viver, em janeiro, fevereiro ou julho, com a mesma humanidade que se proclama em dezembro.
Enquanto o Natal continuar a ser apenas um parêntesis moral num ano de incoerências, continuará a expor, mais do que esconder, a hipocrisia que muitos preferem embrulhar em papel dourado.
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