HISTÓRIA 442
Nos anos 80 do século passado, missão Sal-Lisboa. Já estabilizados no nível de voo planeado.
A luz ténue do cockpit contribuía para um ambiente aconchegante e relaxante, reforçada com o brilho emanado da lua cheia que iluminava o céu e, quase, dispensava a consulta do radar meteorológico (a rapaziada da minha idade teve o privilégio de voar em aeronaves equipadas com esse tipo de radar).
Estava uma noite muito acolhedora e, em termos de navegação, sentia-se o conforto da quietude das asas, não havendo qualquer indício do mínimo de turbulência.
O copiloto houvera sido acometido de uma afonia total. Por outras palavras, o copiloto houvera perdido o pio. O comandante entendeu que, ainda assim, não obstante a incapacidade do copiloto em fazer as comunicações e a dificuldade em acompanhar a execução do “checklist”, o voo poderia ser realizado. De facto, não se registou qualquer problema, por parte do copiloto, em termos de cumprimento das verificações inerentes às várias fases do “checklist”.
Em termos de navegação, aquelas missões eram suportadas pelo Traçado-Ar e, se não existissem razões de exceção, era norma, na Esquadra 501, que o navegador tentasse obter um fixo astronómico, de 50 em 50 minutos, no caso do voo noturno, naturalmente.
Nos momentos julgados adequados e tendo como base o que resultava da obtenção dos referidos fixos, o navegador preenchia a “mensagem de posição” e entregava-a ao comandante. E o comandante, por incapacidade vocal do copiloto, lá fazia o reporte de posição.
Durante o percurso, já sob controlo das Canárias, o comandante pediu-me que tomasse “conta dos rádios”, enquanto ele tratava de um assunto. Acrescentou que a frequência em uso estava no VHF 1. Naturalmente, copiei a solicitação do comandante e selecionei a minha caixa de comunicações para VHF 1.
Passados alguns minutos, percebi que o comandante estava, ligeiramente, inclinado para a frente e começou a ouvir-se, na interfonia, um som de baixa intensidade, mas contínuo, algo rouco e muito familiar, o que me levou a observá-lo e a concluir que “o assunto estava em progresso”.
À hora planeada, iniciei todos os procedimentos inerentes a mais 3 leituras às estrelas, e depois de trabalhar, na carta, o fixo obtido, preenchi a “mensagem de posição” e, claro, em vez de a entregar ao comandante, usei-a para proceder ao inevitável reporte para o controlo das Canárias.
Volvido algum tempo, quando já estava preparado para mais 3 observações às estrelas, reparei que o comandante estava a mexer-se, cuidadosamente, quase de forma clandestina, olhando, sorrateiramente, o copiloto e o mecânico de voo, como que tentando que eles não percebessem que tinha acabado de abandonar os braços de Morfeu.
Lentamente, ajeitou-se na cadeira, direcionou a luz de leitura para a prancheta do manche, observou cuidadosamente a “mensagem de posição” ali colocada – não era a mais recente, naturalmente -, e com toda a serenidade de quem acaba de despertar de uma bela soneca, rumorejou:
- Gonçalves, manténs esta estima ao ponto XPTO?
- Senhor comandante, esse ponto XPTO foi há 50 minutos, mas tem aqui a nova “mensagem de posição” – respondi-lhe, com um discreto sorriso nos lábios, estendendo-lhe o papel que segurava na minha mão.
- Bem me parecia que aquela estima não estava boa – respondeu, esticando o braço para receber a “mensagem de posição” atualizada e exibindo uma expressão facial reveladora de um excelente “fair play”.
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