Há quase uma semana que a nau de Paulo Dias navegava ao longo
daquela língua de areia que o impedia de encostar a terra firme. Com o seu
binóculo assestado descobria finalmente um morro mesmo à sua frente que lhe
parecia propício para aí estabelecer um fortim já que vinha com o propósito de
lançar as bases de uma feitoria à semelhança de outras que desde as primeiras
ilhas no Atlântico os portugueses vinham fundando pela costa ocidental
africana. Ao aproximar-se, deu-se conta de uma segunda língua de areia, mais
pequena, que formava uma formosa baía e um porto de abrigo que lhe parecia
seguro mas cuja entrada o obrigaria a uma manobra mais complicada contornando o
cabo em águas muito baixas e agitadas.
Paulo Dias assestou o óculo para aquela língua de areia
branca pontilhada por inúmeras palhotas podendo aperceber-se que era densamente
povoada, provavelmente por pescadores pois eram visíveis muitas pequenas
embarcações arribadas na praia.
Paulo Dias conferenciou com o seu imediato e mais alguns
membros mais qualificados da sua tripulação e tomou a decisão de ancorar ali e
enviar um primeiro bote com pessoal de confiança e o intérprete que tinham
trazido do reino de N’gola para travar um primeiro contacto com aquela gente,
saber se era gente hospitaleira e ajustar uma audiência do Capitão com o chefe
daquela ilha. “E tu vais também, Octávio, como cronista desta viagem vais ter a
oportunidade de escrever a primeira página da história desta terra...”
“Mais velho, mais velho, conta então a história da
chegada dos tugas... há tanto tempo, 437 anos...”
A miudagem na praia cercara o velho que todas as manhãs vinha
até ali, na ponta da ilha, gozar os seus últimos raios de sol, olhando o mar
com o rosto franzido e os olhos azulados por tantas cataratas que já só o deixavam
perceber vagamente as cores da areia, da espuma da rebentação e do mar
platinado e sem fim à sua frente. O barulho das ondas despertava lágrimas e demasiadas
saudades no velho mas logo o seu rosto se animava com um largo sorriso ao ouvir
os rapazes em alvoroço fazendo perguntas à sua memória de ancião. Como eles o
levavam de volta aqueles dias felizes em que de prancha debaixo do braço vinha
para ali, para aquele mesmo local, mostrar as suas habilidades enfrentando e
deslizando nas ondas para admiração das moças mais lindas das redondezas. A
vida não fora fácil para ele, tivera de deixar a sua ilha mas nunca esquecera o
mar nem os seus primeiros amores vividos entre as carícias do mar e da mulher
que todos os dias vinha até ali só para a
recordar.
”A história, queremos ouvir a história de Luanda...”
“Foi sim, foi há muito tempo... o primeiro branco que
pôs o pé nesta areia tinha o mesmo nome que eu... o meu avô foi que me contou a
história que ele tinha ouvido do avô dele e assim até esse ano da chegada dos
portugueses...”
“Então, não foi mesmo o Paulo Dias o primeiro a chegar
aqui em Luanda?”
“Ele era o Capitão, mandou o seu pessoal para ver como
era, se podia desembarcar e ser recebido pelo Soba... mas o homem que pisou
primeiro a praia aí mesmo foi esse Octávio que era o escritor de tudo o que se
passava no barco, registava as terras onde chegavam, as pessoas que
encontravam...”
“Afinal, foi assim? Não foi um chefe tuga que chegou
primeiro? Mas conta então como ele foi recebido como é que tudo aconteceu?”
“Bom, meu avô me contou que quando o barquito a remos
se aproximava da praia, toda a gente começou a falar, a apontar, uns corriam a
avisar os mais velhos, aquele barco era diferente das nossas canoas... e aquela
gente era muito diferente, não vestia panos...”
O velho estava feliz, com os miúdos à sua volta, ele podia
contar o que quisesse, sempre tivera muita imaginação e nada lhe garantia que a
sua história fosse exactamente como o avô lhe transmitira e antes deste várias
gerações de avós até àquele dia, há 437 anos...
Na sua ansiedade de pisar terra desconhecida até então,
Octávio nem esperou que o barco aproasse na areia fina da praia e saltou para a
água ficando todo molhado até à cintura e com as botas a cuspir água e areia ao
dar os primeiros passos em direcção àquela gente que o recebeu, por essa razão,
com grandes risadas de troça mas sem maldade, a que Octávio respondeu com um
sorriso amarelo que se foi abrindo perante o acolhimento sonoro de que foi alvo
devido à sua precipitação.
Coube ao intérprete dizer as primeiras palavras, fazer as
primeiras perguntas que os outros apenas podiam seguir pelas expressões
estampadas nos rostos dos circunstantes, ora de surpresa, ora de curiosidade,
ora de alguma preocupação e até receio... e pelos gestos das mãos que melhor
falavam por eles. Uns apontaram para as canoas e para as redes dependuradas, um
outro mostrou um pequeno búzio que tirou do pano em que estava cingido
apontando com o dedo para a orla do mar, outro finalmente apontou para o interior
da ilha, e todos os olhos dos recém-chegados procuraram vislumbrar um cercado
de palhotas que devia albergar o paço do chefe local.
O intérprete explicou à comitiva que aquela era uma terra de
pescadores e que também ali se recolhia o zimbo que funcionava como meio de
troca com a outra gente do outro lado da baía... o Soba era um homem muito
importante e muito respeitado em todas as terras ali à volta e vivia no seu
palácio no meio da ilha.
A comitiva escutou e fez sinal de avançar em direcção ao paço
do chefe da ilha pelo que aquela pequena multidão de homens, mulheres e
crianças abriu naturalmente passagem para aquela gente estranha entre os
murmúrios das mulheres, risos das crianças e comentários desconfiados dos mais
velhos que, por natureza não apreciam muito as novidades que lhes venham
quebrar a rotina.
O imediato de Paulo Dias assumiu a responsabilidade de se
dirigir ao mordomo do Soba, para com a ajuda do intérprete entregar uma nota do
comandante da nau, dirigida ao chefe da ilha, solicitando a sua autorização
para ali se manter ancorado e visitar a ilha, travar contacto com a população,
trazer alguns presentes e discutir formas de comércio com as gentes daquela
terra. Logo que uma audiência lhe fosse concedida ele viria prestar as suas homenagens
à autoridade local.
Octávio aproveitou para conhecer a ilha e, como era jovem e
bem parecido, notou com agrado, o sorriso luminoso de uma jovem que vira logo à
chegada, primeiro troçando do seu desastrado desembarque e agora o fixava com
um ar de divertida curiosidade.
A jovem envolta num pano colorido que a cingia toda mas
deixava entrever um corpo esbelto, um pescoço esguio e adivinhar uns peitos ainda
pequeninos, impressionara de tal modo o cronista que dela se aproximou tentando
com gestos e sorrisos ganhar a sua confiança e amizade. Colocou o seu braço ao
lado do dela para que se visse o contraste das duas cores e ambos olhavam
maravilhados para aquela combinação que tanto podia significar diferença,
separação, como harmonia, sintonia, conjunção.
Octávio hesitava, não sabia o que dizer e o que dissesse, por
palavras ela não o entenderia. O intérprete naquele momento também não seria de
qualquer valor, pois, mais do que palavras, entendimento, Octávio queria gozar
o deslumbramento que o arrebatava e que o fazia já amar aquela terra que com
ela se identificava.
A moça voltou a sorrir, menos acanhada que Octávio, o que não
admira pois que era ele o forasteiro e ela a dona da terra, e pegou-lhe na mão,
convidando-o a acompanhá-la. Octávio já observara que dar a mão não tinha o
mesmo significado de intimidade que ele estava habituado a considerar, por ali
dar a mão era apenas um sinal de companhia, de solicitude.
Retribuindo a delicadeza da jovem, Octávio deu-lhe a mão e seguiu-a pela ilha
fora, enquanto na paliçada do Soba os enviados de Paulo Dias, com a ajuda do
intérprete se desdobravam em explicações, narrativas de viagens pelo mar
tenebroso e descrições do reino de Portugal, uma espécie de praia como esta, um
pouco mais larga, lá longe onde, não, não podiam ir naquelas canoas...
A bela jovem que tão logo conquistara o coração do cronista
de Paulo Dias foi-lhe mostrando uma a uma as maravilhas daquela ilha encantada.
Naquele tempo, explicava o velho na
praia, a ilha era toda coberta de palmeiras, havia muito coco, era comida e bebida
que nunca faltava, as casas eram cobertas das palmas das palmeiras, havia muita
sombra, as pessoas trabalhavam na pesca ou na apanha das conchas e búzios para
o cofre do Soba, enquanto as mulheres tratavam de bordar os seus panos,
cuidavam das redes, cozinhavam os mufetes que deixavam todos saciados e ainda
havia na bilha um bom marufo para ajudar a passar o tempo no fim do dia.
“Então a
ilha era um paraíso mesmo?”
“A ilha sempre foi o paraíso... ainda hoje, já não há
palmeiras, olha só, os prédios altos tomaram conta de tudo, os carros fazem
barulho, está tudo sujo... mas as pessoas quando estão na ilha é como os miúdos
na escola e vão correr para o recreio...”
“E o mais velho, também?
“Para mim a ilha é uma mulher que eu amei e não vou
esquecer é nunca... por isso a ilha pode mudar, podem vir milhares de pessoas e
abrirem centenas de bares de praia e restaurantes que eu só vejo o que eu quero
ver... e continuo a ouvir o vento a dar nas copas das palmeiras a fazê-las
dançar e a cantar enquanto a minha mão está na mão dela até eu morrer... não
falta muito...”
“Não fala isso, mais velho, o mais velho não vai
morrer é nunca... senão quem nos vai contar as nossas histórias... mas, mais
velho como foi que acabou essa história desse teu antepassado com a filha do
soba?
Não contei já? Mais de mil vezes? Ele não sabia que
ela era filha do chefe... gostou dela muito mesmo... mas ele era branco e tinha
de voltar no barco do Paulo Dias... ele é que deu para o capitão o nome da
cidade...
Octávio esqueceu o tempo e o dia já estava a declinar. O Sol
tinha já iniciado a sua descida para o mar deixando as suas marcas arroxeadas
no céu para prevenir que chegava a hora de falar baixo, sussurrar carinhos sob
a complacência e o lento abanar das palmas lá no alto das palmeiras. Tinha
visto tanta coisa, a sua jovem companheira, como uma cicerone exímia, havia-lhe
mostrado as conchas lindas que se apanhavam na praia, as canoas de pesca que ele percebeu ela chamava dongos,
mostrou-lhe os pescadores que estavam na sua faina de puxar as redes e viu
depois maravilhado a multidão de peixes a debaterem-se nas malhas em relâmpagos
prateados, levou-a a uma das palhotas onde partilhou uma saborosa refeição de
peixe galo braseado que regou com uma refrescante quissângua.
Octávio nunca vira gente assim tão acolhedora e generosa e acreditou,
certamente, que naquela língua de areia cercada de palmeiras ondulantes, ele
tinha chegado ao paraíso. Nem faltava a Eva que em vez de uma maçã lhe estendia
um búzio que ela levara ao ouvido convidando-o por gestos a fazer o mesmo.
Octávio ouviu então o som do oceano, aquele som misterioso que nos leva por
cima do trono das águas, que nos assusta quando nos precipita no abismo mais
profundo mas nos extasia quando nos devolve à serena tranquilidade de uma
praia, como aquela onde ele agora só tinha olhos para a beleza incomparável daquela jovem por quem já se sentia perdido de
amores e dela nem sabia o nome.
Estavam agora encostados à canoa, não havia mais ninguém por
perto... ela tirou de dentro da canoa uma esteira enrolada que abriu sobre a
areia. Sentada na esteira de bordão macio ela estendeu a mão para Octávio e
desta vez aquela mão lhe pareceu a cabeça da serpente tentadora aproximando-se
para o devorar.
Lentamente Octávio começou por tirar as botas ensopadas, e
quando já só lhe restava a blusa prestes a ela também ficar a flutuar
sobre a canoa, perguntou-lhe, na sua língua incompreendida ainda, como ela se
chamava. Ela ficou curiosa com a pergunta, inclinou o rosto, mostrando dúvida
sobre aquelas palavras engraçadas que não entendia... . Ele então pôs um dedo
sobre o peito e disse o seu nome... e depois levou o seu dedo ao coração da
mulher...Esta sorriu... continuava a não entender... com a sua mão delicada
bateu na esteira... fofa, macia, convidando a deitar e disse: “luanda!”
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